Secretário Estado Adjunto da Educação do Governo de Portugal desde 2016. Doutoramento em Linguística (Universidade de Leiden), estudos no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Professor Catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Autor de vários livros e outras publicações científicas. Membro do comité científico e editorial de algumas importantes revistas e congressos. Professor convidado em várias universidades do Brasil, Países Baixos, Espanha, França e Macau. Desde 2016 é Chair of Talis Governing Board, OECD, por eleição dos seus pares no projeto.
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(Os parágrafos em negrito correspondem a Pepe Menéndez e os parágrafos sem destaque, a João Costa. Colaboração na transcrição para o português de Manuel Galego)
Eu antes pensava que a necessidade de alguma mudança era uma evidência para todos. Hoje entendo e sei que nós não mudamos sem um grande debate participado e responsável e em que todos nos respeitamos, ainda que tenhamos opiniões e visões muito diferentes, porque a mentalidade não é uma questão legislativa. Antes pensava que teria, no governo, uma tarefa que seria fácil e hoje sei que é uma tarefa muito complexa, muito difícil, mas também muito enriquecedora.
A educação portuguesa está na moda em Espanha, onde se valorizam os êxitos educativos conseguidos em tão pouco tempo. Como planearam a ação do governo?
Em 2016 começámos um processo de reflexão muito profunda sobre o currículo, não deitando fora, também, muito do que fomos conseguindo ao longo das várias décadas de escola democrática. Nesse sentido, a primeira questão que nos colocámos foi: – Temos escola obrigatória até aos 18 anos para quê? Qual é o propósito dos doze anos de escolaridade obrigatória? Porque se nós não tivéssemos a resposta a esta pergunta, ficaríamos muito dependentes do que os outros pensam, das expectativas de cada um sobre o aluno, seja a universidade ou outro qualquer, ou então, estaríamos limitados a ir concebendo ligeiras adaptações ao currículo dos anos anteriores.
Começámos identificando o perfil do aluno à saída da escolaridade, ou seja, quais são as áreas de competência que cada aluno deve desenvolver?
Este foi um processo muito interessante porque nós, abrimo-lo à discussão pública. Contámos com opiniões muito diferentes, por vezes muito contraditórias. Seguimos, aliás, três percursos que se complementam e que fomos construindo ao longo de cerca de dois anos, pensar este perfil do aluno, desenhar uma política para a educação para a cidadania, e trabalhar a legislação na área da inclusão. Entendendo sempre que se não chegasse a todos os alunos, então, provavelmente, não estaríamos a cumprir a função e o papel da escola, que é educar todos. Temos consciência de que é muito ambicioso, tudo isto.
Como foi organizado o processo de participação?
Fizemo-lo em várias etapas. Em primeiro lugar, fizemos uma análise interna do nosso currículo, fizemos uma análise comparada com os currículos de outros países. Terão sido uns cinco meses em que tivemos oportunidade também, de interagir com vários parceiros internacionais, conhecer-vos, a vocês, o trabalho que fazem, mas também, no âmbito da discussão da OCDE, da UNESCO, em várias outras organizações que estavam a pensar estes temas. Envolvemos no processo as associações profissionais, ouvimos os professores. Fizemos uma grande conferência em Lisboa em que colocámos a todas as associações de todas as áreas disciplinares, exatamente as mesmas perguntas: O que é que entende que se espera do aluno à saída da escolaridade? Qual poderá ser o contributo específico da sua disciplina e, de que modo poderá contribuir para esse perfil, em colaboração com as outras? Foi uma conferência de uma riqueza incrível e que me permitiu ver que temos uma capacidade instalada, nestas associações e nos nossos professores, enorme.
Paralelamente começámos a fazer assembleias de alunos, num conjunto, que nos dava uma amostra das escolas do país, ouvi-los, sobre o que é a escola, como é que vêm a escola, como é que aprendem, como é que não aprendem, inclusive alunos já universitários que diziam, eu agora sinto o que é a coisa mais importante para eu conseguir prosseguir os meus estudos, e ouvimos também outros setores, ouvimos empresas, ouvimos as associações de pais ouvimos os sindicatos e colocámos o documento em consulta pública. Foram muitos seminários, colóquios, discussões públicas debates com cada um dos setores. Criámos, inclusive, um formulário para que todos os conselhos pedagógicos das escolas se pudessem pronunciar.
Recolhemos, desse processo de consulta pública, cerca de setecentos contributos que foram todos analisados com pormenor, pela equipa, para serem integrados ou não integrados. Sabendo também que há momentos em que temos de assumir o que queremos, ou seja, o desenho de uma escola inclusiva. Uma escola que tem programas sobrecarregadíssimos não é compatível com a escola em que aqueles que têm mais dificuldades crescem ao lado dos outros que têm menos dificuldades.
Mas não basta ter um documento, agora vem a parte difícil.
Como conseguiram romper com a ideia de que o debate era um mero formalismo porque tudo já estaria decidido? Como se desenvolveu o processo até chegar à prática?
Eu não sei se conseguimos romper a ideia, porque essa ideia vem das interpretações e às vezes não tanto da realidade. Quando passámos para a fase de implementação, quisemos ter um ano piloto, em que deixássemos as escolas, voluntariamente, começarem a trabalhar o perfil do aluno com mais flexibilidade na gestão do currículo. Fizemos um convite a todos os diretores das escolas, para um encontro, em Coimbra, e deixámos a cada um a decisão de participar. O ministro e eu tínhamos na cabeça que teríamos umas 50 escolas e, de repente, tínhamos mais de 200 para acompanhar. Tivemos de reestruturar a equipa de acompanhamento.
Foi uma abordagem muito de baixo para cima também, ou seja, nós apoiámos as escolas, mas as escolas criaram as suas soluções. Claro que há aqui uma visão dos propósitos da educação. Esta ação não teve propriamente a ver com a legislação, mas com a vontade das escolas e professores. Por exemplo, na área da inclusão, onde, à partida, parece que todos estamos de acordo com os princípios de uma escola inclusiva, mas depois há a prática, há a pressão daquele pai que não quer aquele menino na turma do seu filho, e estas situações, são as que travam, por vezes, estes processos. O que sempre assumimos foi que iríamos fazer uma transição participada gradual. Tivemos sempre presente que não pretendíamos mudar por mudar, mas atingir um perfil de competências mais amplo, ter uma escola que prepara também para a cidadania e que seja mais inclusiva. Tudo o que veio depois, flexibilidade, autonomia, etc., foram instrumentos para atingir esses desígnios.
Quanto tempo passou desde o início do processo até à publicação do decreto-lei de autonomia e flexibilidade curricular?
No total foram dois anos. O primeiro ano foi o ano da análise interna e prospeção internacional, da participação e publicação do documento. O segundo ano foi o ano do piloto, com as duzentas e tal escolas e durante esse ano, conseguimos ir ajustando o processo legislativo, beneficiando já das experiências que tínhamos e aprovámo-lo para entrar em vigor. Mas, a própria legislação integra um calendário de monitorização e avaliações intercalares e regulares, do próprio processo, porque nós queríamos que a experiência das escolas tivesse impacto nas opções da legislação e que a legislação que estávamos a desenhar se fosse adequando também àquilo que era a realidade das escolas.
Como foi a tua experiência pessoal e profissional durante este período? Sentiste que o teu olhar estava a mudar?
Começámos por estabelecer uma visão clara sobre aquilo que entendíamos e que estava inscrito no programa do governo sobre o propósito da educação. Estas tarefas são sempre bastante complexas e se algo me surpreendeu, foi a grande adesão por parte das escolas, a sua grande vontade de discutir e debater. Embora o vírus o tenha parado um pouco agora, centenas e centenas de seminários, debates, colóquios e textos foram produzidos, em que as pessoas estiveram desapaixonadamente, mas com muita intensidade a discutir educação. Muitas vezes a discussão em torno da escola tem a ver com questões muito infraestruturais, que são importantes, recaem em nós, enquanto responsabilidade do ministério, mas, de repente, tivemos várias centenas de eventos a discutir, o que é avaliar? Como se avalia? O que é a inclusão? Qual é a diferença entre integrar e incluir? Que estratégias? Que metodologias? É possível ou não é possível? Isto é uma utopia ou pode ser uma realidade? Como é que se envolvem os estudantes? Qual é a participação dos estudantes? Isso tem sido muito interessante.
Eu sempre entendi que não é por estar na lei que é verdade, ou seja, do princípio até à prática, qualquer pessoa que trabalha em educação sabe que há várias montanhas pelo meio. Procurámos também, não cair numa espécie de endeusamento de uma ou outra metodologia. Nós precisamos de multiplicidade, de repente, alguns diziam, as aulas expositivas são horríveis, não são, eu posso ter uma belíssima aula expositiva, mas preciso de outras, se eu também só fizer aulas práticas, fica a faltar qualquer coisa. Também temos de diversificar os elementos de avaliação se queremos alunos que sejam conhecedores, mas também críticos, criativos, analíticos, não nos podemos basear apenas num instrumento que avalia memória e alguma capacidade de interpretação. Diria que é um processo em curso e que felizmente tem tido esta participação interessante e sobretudo muito contraditório. Há muita gente que não concorda também, nas escolas, e que faz ouvir a sua voz e ainda bem, porque é isso que nos permite ir ajustando as nossas opções.
Qual é o maior obstáculo às mudanças em educação?
Quando centro o olhar apenas numa perspetiva disciplinar, ou numa perspetiva centrada somente no resultado, isso pode afetar a minha capacidade de ação. Dou um exemplo que vivi enquanto professor universitário de linguística. Eu pensava apenas nos conteúdos da minha disciplina, depois vinham os meus colegas de literatura e adicionavam tudo o que achavam que os alunos deveriam aprender de literatura, de repente, não há tempo para tudo. É preciso fazer opções. Eu não tenho de ter toda a gente a aprender todas as coisas ao mesmo tempo embora saibamos que não existe escola sem conteúdos e sem conhecimento, o conhecimento é um pilar fundamental do que nos faz cidadãos e seres humanos. Se eu parto apenas de um olhar disciplinar, eu não consigo fugir desse olhar e não me preocupo com o que os outros têm de ensinar não me preocupo com uma visão integrada do currículo, esse é um obstáculo, o quebrar das barreiras das disciplinas num olhar integrado do currículo.
Um outro obstáculo, que se prende com várias outras dimensões, é a questão da falácia da meritocracia. Quando nós falamos em escola inclusiva, em promover sucesso, que todos os alunos têm de aprender, há sempre umas vozes que vêm dizer que isso é facilitismo, é baixar os standards. E que se trata de ideologia. E eu respondo que, é claro, é ideologia, que consiste em perceber que não podemos competir um com o outro sem considerar as condições dos outros. Se sabemos que as nossas sociedades estão afetadas por muito individualismo e desigualdades, não podemos ter como prioridade que o meu filho seja o melhor da turma ou estarmos dependentes dos rankings das escolas, que nos dizem muito mais sobre a comunidade que servem, do que sobre a qualidade e o trabalho que lá se faz. É mais difícil garantir que a jovem cigana não abandona a escola, que garantir que o jovem privilegiado do bairro privilegiado tem boas notas. Quando falamos de qualidade do sistema educativo, também estamos muito a pensar nisto. É uma mensagem muito difícil, porque, normalmente até se concorda com os princípios, mas depois as práticas têm de ser muito diferentes. Esta diferença entre igualdade e equidade não pode ser interpretada como querermos facilitar a vida aos que têm dificuldades. Nós queremos que todos os alunos sejam levados ao limite das suas possibilidades.
Existe alguma relação de causa e efeito entre a abordagem pelas aprendizagens interdisciplinares e a atenção à diversidade?
Também tem a ver com o contraste entre princípios e práticas. Eu tenho tentado fazer uma politica de terreno, tenho andado muito pelas escolas. Eu diria que os professores querem mesmo, que os seus alunos aprendam. A questão por vezes é, ao nível macro, responder à pergunta, o que é que significa todos aprenderem? Esta é uma pergunta muito difícil. Nós tentámos responder com algum emagrecimento do currículo, tentámos responder com o perfil dos alunos, mas há um momento em que tem mesmo a ver com o tamanho do currículo, quando colocamos lá todos os pormenores da história universal não há tempo para a inclusão. E há aqui uma relação difícil com a própria academia.
Prende-se também, ao nível macro com a capacidade de decisão do professor, a possibilidade que temos, ou não, de definir o que é um aluno com sucesso? Prende-se depois, com a relação que existe em termos do acesso às universidades e as exigências de uma formação que se quer global. Trata-se de um nível macro de expectativas, que não são só dos ministérios e dos governos, são da própria sociedade, uma sociedade que se tornou ultra competitiva, darwiniana no pior sentido e que se reflete na sala de aula. Muitas vezes, a escola quer ser inclusiva, mas os professores não sabem como fazê-lo. Há aqui uma necessidade de trabalhar as dimensões e competências sociais e emocionais. Nós todos conhecemos os alunos que não querem estar na escola. Por isso é muito importante trabalhar as questões da motivação e gosto pela aprendizagem. Ariana Cosme, professora da Universidade do Porto, tem uma frase de que gosto muito, “a motivação não faz parte do material escolar”. Não significa transformar o professor num “stand up show”, mas sim perceber que a minha vontade de aprender também está relacionada com a forma como aprendo e a forma como os problemas me são colocados. Tomemos como exemplo o momento de pandemia, que estamos a viver, os alunos vivem imersos nisso, temos aqui material para estudar matemática, biologia, filosofia, ética, saúde, estatística ou economia. Se aproveitarmos essas notícias para abordar com a turma, estaremos a trabalhar, também essa dimensão motivacional.
Como eu disse, há alunos que não querem estar na escola, mas nós temos de tentar entender porquê e darmos-lhes espaço para falar. Lembro-me do caso de um aluno que dizia que odiava a escola, e era um causador de problemas e de situações de bullying e quando lhe perguntei sobre o que se passava me respondeu que tinha a família toda presa. Nós não podemos assumir que um aluno que chega à escola depois de ter tido a família toda a ser presa, durante a noite anterior, tenha as mesmas condições de aprendizagem de um aluno que chega à escola e foi de carro, e tomou pequeno-almoço. A resposta é mais difícil porque não podemos baixar os standards, para ele se sentir bem na escola, temos de saber ouvi-lo e puxá-lo, o máximo possível.
O tempo de confinamento provocou diversas situações que estão a mudar o olhar sobre a escola. Pode acontecer que quando regressarmos, em setembro, alguns alunos e famílias tenham outro olhar sobre o ensino presencial.
Houve uma capacidade de resposta muito rápida, foi uma resposta de emergência. Conseguimos muito e desenvolvemos novas capacidades. Alguns alunos que não se sentiam à vontade para falar na aula conseguiram falar pelo “Zoom”. Temos também, professores que reportam que desenvolveram uma capacidade de acompanhar individualmente os alunos. Mas percebemos também que esta crise, em termos educativos, é um enorme acelerador de desigualdades. Aqueles alunos para quem as coisas estão a correr bem são, maioritariamente, aqueles, a quem as coisas já corriam bem. Em vez disso, os estudantes sem apoio familiar, agora encontram-se mais dependentes do apoio familiar. Eu tenho um enorme orgulho nas nossas escolas pela sua capacidade de adaptação, mas desejo ardentemente que possamos retomar a normalidade porque, se é verdade que teremos novas técnicas, novos instrumentos de trabalho e novas coisas para pensar, não podemos desprezar que a principal função da escola é ser um elevador social e não ser uma réplica das desigualdades de partida. Eu sei que os movimentos do “homescholling” têm vindo a crescer em vários pontos, não vou aqui questionar as opções dos pais, mas sei que há uma dimensão da escola na formação de indivíduos, que é o desenvolvimento das nossas capacidades de relação e de socialização, e de alguma resiliência a lidar com a contrariedade, que o computador, em casa, não nos dá.
Isso dá à escola uma responsabilidade maior para promover o trabalho colaborativo dos alunos. Se voltarmos para a escola esquecendo as características que assinalaste, e nos focarmos novamente na memorização, podemos vir a provocar desencanto.
Pelo feedback que nós temos, as escolas têm velocidades muito diferentes, como já tinham antes da pandemia. Algumas escolas têm tido mais capacidade de trabalhar o currículo, outras estão mais apostadas em manter contacto com os alunos. Por isso, o próximo ano, vai ter de ser um ano que tenha essas questões em consideração. Há coisas que vão ficar, como a potencialidade da colaboração, da cooperação, e a exploração das plataformas tecnológicas de que nos apropriámos, à força. E temos de pensar também, indo um pouco mais longe, na função de proteção do ser humano, há muitos alunos que só comem na escola, muitos alunos que só encontram um momento de paz no espaço escolar, porque vivem em ambientes conflituosos. Há muitos alunos que são vítimas de abusos, de maus tratos, e é o professor quando vê o olhar triste do aluno que entende que alguma coisa não está bem, esses alunos precisam dos outros e por estas funções sociais é muito importante que a escola esteja aberta para todos. Eu sou professor, ainda que na universidade, mas o olhar dos alunos ali na sala de aula, é o que me diz, em primeiro lugar, se a aula está a funcionar ou não. Isso não consigo fazer com a tecnologia, porque a essência do ato educativo é relacional.
És um professor de universidade, mas falas como professor de instituto, o que está na origem dessa impressão?Ter tido uma mãe professora, ter estudado em escolas públicas, onde cresci com grandes amigos que ainda hoje são meus amigos, que viviam em bairros e condições de enorme dificuldade. Ter trabalhado com crianças de rua, quando era jovem, em campos de férias, eu acho que foram experiências que me ajudaram a ver que, nós temos de ser uns para os outros, e se eu deixar o outro não ser, ou disser que isso não é um problema meu, eu estou a desumanizar-me também a mim próprio. Também há uma formação política, estou num governo socialista que também olha para estas coisas com atenção e que elege as desigualdades e o combate às desigualdades como um dos seus principais eixos de trabalho.
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